sábado, 1 de setembro de 2007

Dona Glória

Quando passei a ser um dos auditores do hospital, alguns problemas foram passados. Foi aí que conheci Dona Glória. Paciente considerada problema pelo seu gênio irrascível, sua língua afiada e sua fantástica capacidade de gerar desafetos. Logo conseguira brigar com uma equipe inteira de médicos, ser detestada pela Enfermagem, que ela humilhava regularmente. Não havia uma só pessoa que ela não brigasse.
Fui conhecer Dona Glória, no intuito de transferi-la para um dos Lares do Hospital, visto ser uma senhora lúcida, 80 anos, sem nenhum familiar vivo, amigo ou parente, com um irritante defeito de fala, como se falasse todas as palavras iniciadas com “T”.
Como seu tratamento era crônico, e poderia ser feito em casa, desde que tomasse os remédios, passei a acompanhá-la.
E foi em uma tarde, em meio a uma torrente de frases e assuntos, que percebi, que além de insuficiência cardíaca e diversas patologias, seu problema era tão visível que chegava a ser gritante. Dona Glória padecia de carência.
A mais pura, a mais intensa, a mais cruel solidão a fez se tornar irrascível. Passei quase uma hora sentado ouvindo-a. Contava em ritmo apressado, como se tivesse que colocar todos os acontecimentos de décadas, em minutos. Falava como alguém que nunca falara antes, falara como se vomitasse as palavras, como se as frases lhe surgissem em erupção, contava sua vida, sua história, a de seus pais, a de conhecidos. Sempre numa velocidade estonteante, com uma disartria cheia de “T´s”.
No meio da erupção de palavras, percebi que seu coração físico tinha vários problemas, mas o coração emocional estava sufocado, pedindo socorro.
Vi Dona Glória sorrir pela primeira vez, três dias após a nossa primeira conversa. Sorria e me agradecia. Mesmo eu tendo de deixá-la por último, devido ao enorme tempo de visita que despendia.
Enquanto ela falava percebi como nós, os seres humanos, só desejamos um pouco de atenção, de carinho, de um desabafo. E por trás da irrascível, louca, senil, e dos diagnósticos, havia um coração sufocado.
Sei que ela jamais voltará para a casa que morava, pois fora invadida por traficantes, e agora, seria demolida pela Prefeitura. Cabe a ela morar em um Lar Geriátrico, onde possa ser ouvida.
Em 15 anos de formado, ainda tenho muito a aprender, e cada um que passa, ensina algo, ou relembra algo já aprendido e adormecido nos arquivos da mente.
Dona Glória está melhorando, e logo vou visitá-la.
Ela me ensinou um pouco mais sobre Medicina...

8 comentários:

Sônia Rodrigues disse...

Sabe Aleph, estamos rodeados de D. Gloria e por muitas vezes somos D. Gloria.
No nosso corre corre não podemos perder tempo e olhar pro lado ou pra dentro de nós mesmo é dificil.
Trabalho num lugar onde lido com muuitas pessoas e as vezes aparece uma D. Gloria por lá e lembro o quanto é importante termos amigos e uma familia que nos dê atenção e carinho.
Bjs.

disse...

Realmente Aleph. A vida é um grande aprendizado. E cada dia percebemos q ainda temos muito o que aprender. Hj em dia as pessoas estão realmente muito carentes e as vezes lançam mão de algum artefato para esconder essa carência. Ou tentar driblar para não ser mais um coitado(a).Não é atoa que depressão é o mal do século.Um pouco de atenção as vezes é o melhor remédio. E imagino como vc deve ter ficado feliz de porder ter ajudado da Dª Glória. Que por sua vez se sentiu querida e cuidada pela sua atenção. Parabéns. Muito bonito o q vc fez.

Unknown disse...

Oiê Aleph,

É... as vezes encontramos pessoas nos nossos caminhos que são verdadeiros farois a nos iluminar...

Bjinhos^.^

Dani Fonseca
http://fotolog.com/dani_fonseca

ANATERRA disse...

Pois é mano amado, lembra-se que algum tempo atraz, qd eu falei para vc que a minha filha, passou na faculdade e tava indo morar em outra cidade? E eu estava me sentindo triste , vazia, e vc me disse que isso era a sindrome do ninho vazio, pois é meu querido, tenho muito da dona Gloria dentro de mim, que bom que ela tem vc, para ouvi-la, dar afeto e carinho....beiju grande....Aninha

ANATERRA disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Mel disse...

Pois é, Aleph... a vida nos ensina muitas coisas pelas quais paramos e pensamos: será que tamb´´em não somos assim e não percebemos?
Ai chaga a velhice, os outros se vão e resta apenas uma história triste de morte por não termos um amigo no qual poderíamos deitar nossos ombros e chorar... bjksss em seu coração, tá! Depois passa lá pra conhecer meu blog. Estarei esperando um oi!
Mel
http://meireruiz.zip.net

Marcelha disse...

Aleph, muito interessante esse post. Cada vez mais o homem tem tido menos tempo. Em 5 minutos pode pode pedir uma refeição num restaurante de fast food, em 5 segundos se conectar à uma pessoa do outro lado do mundo, e cada dia mais as pessoas estão mais distantes. Tenho um professor que é médico psiquiatra (faço faculdade de psicologia), e ele diz que hoje tudo é depressão. Todos os diagnósticos são de depressão, o que não é verdade. E o pior, é que diagnosticada a depressão, da-lhe medicamento... aff. Claro que D. Gloria tem problemas fisicos que dem ser tratados, mas acho que ao descobrir a carência dessa senhora, você auxiliou (e muito) na somatização. Genial Aleph! São experiêcias como essa que nos motivam, e fazem com que continuemos a acreditar nas pessoas e no coração. Parabéns!

Marcelha disse...

Aleph, muito bom seu post. são essas experiências que nos fazem acreditar nas pessoas e no coração. A cada dia que passa todos estão muito ocupados, em 5 minutos podemos obter uma refeição num restaurante de fast food, em 5 segundos podemos nos conectar com uma pessoa do outro lado mundo, mas a cada dia que passa ficamos cada vez mais distantes. Tenho um professor que é médico psiquiatra, ele diz que atualmente todos os diagnósticos são depressão, o que nem sempre é correto. E da-lhe medicamento. D. Glória tem problemas físicos sim, mas ao constatar sua carência e lhe suprir a necessidade a atenção você dever no mínimo ter amenizado sintomas de somatização, Aleph atitudes como essas nos faz sentir mais humanos. Contranstanto com a repetição de ações mecânicas do cotidiano. Parabéns, genial